quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A primeira vez que fui ao céu - Elizandra Souza





“Borboletas são tão belas, o que seria delas se não pudessem voar?
O céu e as estrelas não poderiam vê-las passar.”
(Filipe Trielli, Dimi Kireeff e Diego Guimarães)


Era embaixo do cajueiro, na fazenda do meu avô. No Cauê, zona rural da cidade de Nova Soure, interior da Bahia, onde ele morava.

Lembro que foi nas férias no meio do ano que o vi pelaprimeira vez. Estava na fazenda vizinha, fiquei encantada, queria pra mim.

Na manhã seguinte eu estava vestida de ansiedade, os olhos faiscando de expectativa, indiferente ao desgosto de minha avó diante dessa minha alegria.
Apesar dela, a devoção de meu pedido foi tão forte que, com o sol já passado do meio-dia, mas ainda a horas de alcançar os braços da lua, meu avô voltava da lida trajando sorriso de rei e trazendo nas mãos cordas e madeira.

Minha avó tentou convencê-lo: “Se essa menina se machucar, você é o culpado!”

Vejam se eu, já com oito velinhas sopradas, perto de alcançar mais uma, me machucaria?

Vovô quase cedeu a ela no primeiro momento, mas confessei minha preferência por ele e expressei que tomaria cuidado.

Isso e um beijo no rosto lhe deram disposição para começar a construir minha nave.

Eu observava atenta, nem tão perto para não atrapalhar, nem tão longe para não me descuidar de detalhes da construção, as cordas sendo presas nos galhos do cajueiro e depois as mesmas
sustentando a madeira. Estava em guarda, como quem zelasse por um castelo que acolhia o coração de uma princesa.

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Eu ouvia meu nome como se estivesse dormindo, fascinada pelo trabalho que analisava. Foi quando percebi que estava pronto para a estréia, uma estréia que teve de esperar, pois
o sol já tinha partido e as estrelas dominavam o céu. Era perfeito. Se eu pudesse, dormiria lá, de olhos bem abertos, vigilantes. Seria possível?

— Dara!!! Daaaara!!!!!

Precisávamos jantar. Eu já estava com a barriga bem cheia de felicidade, mas ainda assim queria devorar a noite para que o grande dia chegasse.

Após a refeição nos reunimos para a oração, vovô sentado na rede, vovó no tamborete, eu ajoelhada diante do crucifixo da varanda, todos iluminados pela luz do candeeiro. As
preces eram sempre as mesmas... Pai Nosso, Ave Maria, Anjo da Guarda... Eu, que sempre fingia devoção, rezei nesta noite com fervor. A ausência das minhas irmãs — que não paravam quietas, me cutucavam, ficavam rindo baixinho, me beliscando — e o sonho de todo o dia, fizeram com que eu me comportasse e agradecesse de fato nas preces dessa noite.

Quase não dormi. Acordava toda hora, espiava pela fresta da janela, mas ainda continuava escuro. O sol tardou, até que entrou devagarzinho e eu pulei da cama. Nem escovei os dentes, saí correndo para o encontro da minha nave...

— Pode ir voltando, mocinha! Escove os dentes e tome café. E cadê a benção?

— Benção, vôzinho.

— Deus lhe abençoe!

Cabisbaixa, mas com ligeireza, fui fazer o que me foi ordenado.

Quando terminei, vovô me esperava no cajueiro como um guerreiro, já dando de imediato algumas orientações, de como tomar cuidado com as lagartas de fogo, não colocar os pés no chão e não aumentar a velocidade.

Sentei-me, posicionei as mãos nas cordas, vovô puxou para trás a madeira em que eu estava sentada e soltou...

Fui ganhando velocidade, ele empurrava as minhas costas.

Fechei meus olhos, sentindo o vaivém da minha nave... o cajueiro soltando as folhas como se estivesse emocionado...

o vento acariciando o meu rosto... estava no céu!




Fonte: Publicado no livro Um Segredo no Céu da Boca - Edições Toró, dezembro de 2008.


Mais informações: http://www.edicoestoro.net/




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